No Meio do Caminho: Como Escrevi o Roteiro de Me Leva
- estoriatos
- 16 de jun.
- 9 min de leitura
Atualizado: 24 de jun.

Uma viagem pelas etapas de escaleta, argumento e roteiro de uma comédia romântica queer no interior de Goiás.
escrito por Stefanny Pina
Escrever Me Leva foi uma experiência de descoberta tão intensa quanto a própria viagem vivida por Gabi e Léo. Desde o início, minha intenção era contar uma história sobre laços afetivos, mas não apenas os românticos. Queria falar sobre amizade, sobre o meio do caminho, sobre aquilo que nos transforma quando menos esperamos.
Só que transformar uma ideia em uma narrativa estruturada exigiu mais do que inspiração. Foi preciso organização, escuta e paciência de reescrever quantas vezes forem necessárias. Entre o desejo e o roteiro existe um longo processo de criação que passa pela escolha de cada cena, a ordem dos acontecimentos, o ritmo da trama e, principalmente, o arco emocional dos personagens. A escaleta, o argumento e o roteiro final foram etapas fundamentais dessa construção. Cada uma com seus próprios desafios, dúvidas e descobertas.
Neste texto, compartilho como cada uma dessas etapas aconteceu, como os personagens guiaram decisões narrativas e como a viagem de Gabi e Léo, com suas adversidades e imprevistos — também refletiu meu próprio percurso como roteirista.
A escaleta como guia de estrada
Durante a criação da escaleta, aquele momento em que resumimos cena por cena, percebi que o final ainda não estava como eu queria. Muita coisa mudou. Tive que cortar trechos, repensar passagens inteiras e reescrever blocos que pareciam promissores, mas que acabavam se repetindo em suas intenções. Em especial, as cenas do primeiro ato estavam ocupando espaço demais na narrativa, e eu sentia que isso atrapalhava o desenvolvimento emocional da trama. Segundo Doc Comparato, autor de Da Criação ao Roteiro (2009), a escaleta é uma das etapas mais importantes do processo de roteirização, pois permite ao autor visualizar a progressão dramática da história, testar a fluidez da estrutura e identificar desequilíbrios antes da escrita final. Comparato também ressalta que “escrever é reescrever” — e, de fato, foi a reescrita que lapidou o que o filme viria a ser.
Apesar de muitos processos de escrita sugerirem que o argumento venha antes da escaleta, minha experiência pessoal com Me Leva foi o contrário. Percebi que organizar a escaleta primeiro facilitava, e muito, o meu processo de escrita do argumento. Ter um mapa claro das cenas, dos eventos e da evolução emocional dos personagens me dava segurança para não me perder no meio do caminho.
A escaleta, nesse sentido, funcionou como um guia de estrada. Cada cena descrita ali era uma parada, um encontro, um obstáculo ou uma revelação necessária na jornada dos personagens. Ao mapear esses momentos com antecedência, pude visualizar melhor o ritmo da narrativa, entender onde a trama precisava respirar e onde ela precisava avançar. Isso foi essencial para uma história como Me Leva, em que o percurso é literal e simbólico.
Nesse processo, optei por estruturar a escaleta com base na técnica conhecida como 8 Sequence Approach, bastante difundida por autores como Frank Daniel, Paul Gulino e Chris Soth. Essa abordagem divide o roteiro em oito segmentos dramáticos, cada um com seu próprio mini-arco e virada narrativa, organizando a história de forma mais fluida e coesa. Ao trabalhar em blocos menores, pude manter um equilíbrio entre progressão dramática e desenvolvimento de personagem, o que foi decisivo para manter a curva de amadurecimento de Gabi e Léo viva ao longo da trama.
Embora o modelo clássico de desenvolvimento de roteiro muitas vezes proponha a ordem "logline → sinopse → descrição de personagem → argumento → escaleta → roteiro", há autores que defendem a flexibilidade desse processo criativo. Syd Field, em Screenplay: The Foundations of Screenwriting (1979), sugere que a estrutura deve ser pensada como uma bússola, não como um trilho fixo, e que cada roteirista deve encontrar seu caminho a partir de sua relação com a história. Para mim, a escaleta era essa bússola: permitia visualizar não apenas o que acontecia, mas principalmente por que acontecia.
Além disso, Christian McKee e Linda Seger apontam em diferentes momentos a importância da estrutura emocional do roteiro, não apenas a sequência de eventos, mas o arco de transformação dos personagens. Em Making a Good Script Great (1994), Seger afirma que uma escaleta bem construída pode antecipar os momentos-chave da mudança interna dos personagens, garantindo coerência ao argumento e ao roteiro.
No caso de Me Leva, essa coerência foi especialmente importante. Porque a história de Gabi não é sobre grandes acontecimentos externos, mas sobre pequenos deslocamentos internos — como uma frase mal dita pode doer mais que um acidente de carro, ou como um gesto de carinho pode desarmar anos de insegurança. A escaleta precisava ser sensível a essas nuances, para não correr o risco de transformar um filme sobre afeto em uma sucessão de ações vazias.
Dividir o processo de criação da escaleta em blocos também me ajudou a manter a organicidade da história. Como propõe Kristin Thompson em Storytelling in the New Hollywood (1999), a divisão da narrativa em segmentos é uma forma eficiente de equilibrar expectativa e surpresa, mantendo a atenção do espectador ao mesmo tempo em que se constrói profundidade temática. Em Me Leva, os oito blocos do 8 Sequence Approach foram organizados de forma a permitir uma crescente emocional: o plano, a falha, o imprevisto e, por fim, a possibilidade de um novo caminho.
Assim, quando cheguei à etapa do argumento, a sensação era de já conhecer muito bem os caminhos daquela estrada. Eu não partia mais do zero — já havia pistas, curvas e paisagens anotadas, prontas para ganharem corpo, textura e diálogo.
Transformando estrutura em narrativa
Com a escaleta finalizada e servindo como um mapa detalhado da trajetória emocional de Gabi, Léo e dos demais personagens, cheguei à etapa da escrita do argumento com mais confiança. Enquanto a escaleta organiza os fatos, o argumento precisa dar corpo, alma e ritmo à narrativa. É nesse momento que a trama começa a respirar, os personagens ganham nuances, as cenas se expandem, o tom se define com mais precisão e as relações se aprofundam.
Durante essa fase, tive o privilégio de ser selecionada para as consultorias oferecidas pelo SAPI – Mercados Audiovisuais, um projeto que visa dar espaço de desenvolvimento, conexão e promoção do audiovisual, especialmente aquele realizado no Centro-Oeste brasileiro, encontro essencial que me permitiu apresentar o argumento para profissionais atuantes no mercado. Essas trocas foram fundamentais para perceber como minha história poderia dialogar com públicos diversos e ainda preservar sua identidade. Recebi feedbacks de representantes de players como a Globoplay, a produtora baiana Têm Dendê Produções, que tem investido em narrativas negras e LGBTQIA+ com forte recorte regional, e da Orion Cine, produtora chilena voltada para histórias afetivas e intimistas. Essa escuta qualificada me ajudou a reforçar o tom do projeto como uma dramédia, entender seu potencial comercial e também refletir sobre o que poderia ser mais bem lapidado na estrutura.
Além da escuta no SAPI, contei com consultorias personalizadas de duas grandes roteiristas brasileiras: Bia Crespo e Ray Tavares.
Essas trocas foram momentos-chave para a evolução do argumento. A partir delas, reforcei alguns temas que antes apareciam com menos força, como a idealização amorosa, questões com o próprio corpo e o peso das expectativas. Também cortei cenas, mudei ordens, intensifiquei conflitos e reposicionei alguns personagens, sempre com o objetivo de tornar a história mais viva e coerente.
A prática de revisar e testar versões também é discutida por Michel Chion, que sugere que o roteiro deve ser pensado como um organismo vivo, mutável, que cresce à medida que o roteirista compreende melhor seus personagens e sua história (La Toile Trouée, 1991). Foi com essa mentalidade que busquei escutar leituras críticas, aceitar sugestões e simplificar escolhas narrativas até alcançar a versão que realmente traduzia o espírito do filme.
O argumento final de Me Leva é, portanto, fruto de muitas mãos, escutas e leituras. Mas, sobretudo, é o reflexo de um desejo profundo de contar uma história que, mesmo singela, pudesse tocar e reconhecer quem somos — especialmente quando estamos no meio do caminho, ainda sem saber o que vem depois da próxima curva.
A escrita do roteiro: quando tudo ganha corpo
Chegar à etapa da escrita do roteiro de Me Leva foi como finalmente sentar no banco do carro depois de planejar toda a viagem. Eu já sabia para onde queria ir, quais curvas enfrentaria, quem estaria no banco do passageiro e quais paradas seriam inadiáveis. Mas, como toda viagem, ainda havia espaço para o imprevisto. O roteiro é onde as ideias se tornam ação e diálogo, onde o subtexto aparece nas entrelinhas e onde os personagens finalmente ganham voz.
Com a escaleta e o argumento bem amarrados, iniciei o primeiro tratamento do roteiro com uma sensação de intimidade com a história. Sabia quais eram os momentos-chave da narrativa, mas a escrita do roteiro foi o momento de descobrir como cada cena se manifestava de fato, o ritmo da conversa, os gestos silenciosos, as pausas, os olhares. Foi quando percebi, por exemplo, que algumas falas funcionavam melhor como silêncio, e que certas cenas precisavam de mais ar para respirar.
Essa etapa exigiu atenção aos detalhes: transições, construção de ritmo, dosagens de humor e drama, ajustes no tempo diegético e na progressão emocional. A comédia dramática, por natureza, exige um equilíbrio delicado. Como afirma John Truby em The Anatomy of Story (2007), “bons roteiros são como música: cada nota tem um papel no conjunto”. E escrever Me Leva foi exatamente isso, montar uma partitura onde cada gesto dos personagens precisasse ser coerente com sua trajetória até ali.
Além disso, a revisão contínua foi indispensável. Em um momento, eu achava que a estrutura estava sólida, mas ao reler com distância, percebia excessos, redundâncias, ou falas que traíam a essência dos personagens. Foi aqui que as contribuições das consultorias também fizeram toda a diferença. A troca com roteiristas experientes me ajudou a pensar melhor os diálogos, ajustar os arcos dramáticos e dar mais profundidade a algumas transições emocionais que ainda soavam abruptas.
O roteiro também foi uma etapa de corte. Algumas cenas da escaleta que pareciam funcionar na estrutura, simplesmente não encontraram espaço na versão escrita. Outras, antes pequenas, cresceram organicamente. É o roteiro que testa se a história se sustenta, se os personagens resistem ao papel, se a emoção transborda mesmo sem precisar de muita explicação. E talvez o maior aprendizado tenha sido esse: confiar no que está vivo, mesmo que fuja do plano.
Escrever o roteiro de Me Leva me lembrou que, por mais que haja técnica e método, a escrita de um filme também é feita de escuta. Escuta da história, dos personagens, do que está implícito no silêncio e do que está nas entrelinhas. Ao fim do primeiro tratamento, tive a certeza de que o filme ainda precisava amadurecer e isso é o mais bonito de um roteiro: ele nunca está exatamente pronto, mas sempre mais perto daquilo que quer ser. Também aprendi que, às vezes, é necessário voltar ao início. A escrita de um roteiro é tão cheia de etapas, decisões, opiniões e versões, que é normal se perder no meio do caminho. Mas o melhor a se fazer nesses momentos é retornar à origem e lembrar: o que é que eu quero contar? Qual é o coração dessa história? Ter consciência disso é o que sustenta todo o resto, estrutura, cenas, diálogos e é o que permite que a história continue sendo verdadeira, mesmo quando muda.
No fim, tudo é sobre o caminho
Me Leva é uma comédia romântica, sim, mas também é um filme sobre se perder e se encontrar, com os outros e consigo mesmo. O processo de escrita refletiu isso o tempo todo: uma jornada com desvios, tropeços, paradas inesperadas e, acima de tudo, muito aprendizado.
Porque às vezes, como acontece com Gabi, o que realmente transforma não é o destino, mas tudo aquilo que acontece no meio do caminho.
Me Leva é um projeto de desenvolvimento de roteiro aprovado no Edital de Seleção Pública nº 06/2023 – Cinema e Audiovisual, da Lei Paulo Gustavo de Aparecida de Goiânia
Referências Bibliográficas
CHION, Michel. La Toile Trouée: essais sur le cinéma et l'imaginaire. Paris: Cahiers du Cinéma, 1991.
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: teoria e prática. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
DANIEL, Frank. The Tools of Screenwriting. Nova York: St. Martin’s Press, 1987.
FIELD, Syd. Screenplay: The Foundations of Screenwriting. New York: Dell Publishing, 1979.
GULINO, Paul Joseph. Screenwriting: The Sequence Approach. New York: Continuum, 2004.
McKEE, Robert. Story: Substance, Structure, Style, and the Principles of Screenwriting. New York: HarperCollins, 1997.
NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002.
SEGER, Linda. Making a Good Script Great. Hollywood: Samuel French Trade, 1994.
SEGER, Linda. Creating Unforgettable Characters. New York: Holt Paperbacks, 1990.
SOTH, Chris. Million-Dollar Screenwriting: The Mini-Movie Method. Los Angeles: Movie Method, 2005.
THOMPSON, Kristin. Storytelling in the New Hollywood: Understanding Classical Narrative Technique. Cambridge: Harvard University Press, 1999.
TRUBY, John. The Anatomy of Story: 22 Steps to Becoming a Master Storyteller. New York: Faber & Faber, 2007.
VALENTE, Eduardo. As Formas do Tempo: um estudo sobre a estrutura narrativa e estética do cinema brasileiro contemporâneo de 2000 a 2012. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura), UFRJ, 2015.



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