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Da ideia ao roteiro: bastidores da escrita de Me Leva

Atualizado: 24 de jun.

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O processo de pesquisa, estruturação e criação do roteiro do longa-metragem.

escrito por Stefanny Pina


Escrever o roteiro de um longa-metragem é como começar uma viagem de carro: você tem um ponto de partida e uma ideia do destino, mas o trajeto está cheio de descobertas, curvas inesperadas e paradas que você nem esperava, mas que te transformam tanto quanto a chegada. No caso de Me Leva, essa jornada começou com uma inquietação muito pessoal: a ausência de histórias leves, românticas e representativas dentro do cinema nacional, especialmente aquelas que colocam em pauta corpos diversos, afetos queer e juventudes periféricas no centro da narrativa.

A ideia surgiu da vontade de criar uma história que fosse próxima da minha vivência, mas que também conversasse com um público amplo. Eu queria falar sobre primeiros amores, expectativas, frustrações, amizade e amor próprio, tudo isso com um olhar afetuoso e cotidiano. Queria ver personagens que raramente estão nas telas, como uma jovem gorda, lésbica, apaixonada e atrapalhada, vivendo um amor intenso, mesmo que confuso, como acontece com todo mundo.


Descobrindo caminhos, referências e inspirações

No início do processo, entre julho e agosto de 2024, mergulhei em uma pesquisa ampla que envolveu referências cinematográficas, literárias e visuais. Um dos textos que mais me impactou foi o artigo “Representatividade LGBTQIA+ no Cinema Brasileiro Contemporâneo” (Silva, 2020), que aponta como a maior parte das produções com personagens LGBTQIA+ ainda se concentra em narrativas trágicas, voltadas ao sofrimento, rejeição ou exclusão social. Isso reforçou minha vontade de propor uma dramédia afetiva, que partisse da leveza e da descoberta, sem ignorar as contradições da vida.

Também busquei filmes e séries como Tudo que Você Podia Ser (2022), Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014) e a série Feel Good (Netflix), que me ajudaram a pensar em como representar afetos queer sem cair em estereótipos ou didatismos. O tom que eu buscava estava ali: histórias que acolhem a dúvida, o improviso, a hesitação e a beleza das pequenas coisas. Um cinema mais íntimo, mais respirado, como defendem autores como David Bordwell (2008), quando fala sobre “narrativas de tempo morto”, ou seja, aquelas que valorizam o cotidiano como motor da história.

O processo de escrita envolveu uma pesquisa temática e estética. Quis tratar não apenas da sexualidade, mas também da construção da autoestima, da amizade como força motriz e do crescimento pessoal que acontece fora das grandes cidades. A ideia era criar uma história que, embora profundamente pessoal, se conectasse com experiências comuns, especialmente para quem cresceu fora das grandes cidades e sentiu a urgência de se entender em meio às pressões da juventude.

As influências variaram desde filmes como Pequena Miss Sunshine (2006) e Benzinho (2018), que equilibram humor e drama de forma sensível, até produções como Frances Ha (2012) e (500) Dias com Ela (2009), que trazem personagens em busca de sentido em meio ao caos cotidiano. Essa mistura ajudou a definir o tom agridoce que acompanha a protagonista de Me Leva em sua jornada de autodescoberta.

Também busquei inspiração em séries e filmes LGBTQIA+ mais recentes, como Bottoms, Crush, Eu Nunca... e Atypical, que mostram personagens queer além da dor, vivendo histórias leves, engraçadas e tocantes. A ideia era clara: usar a viagem como metáfora do crescimento e da redescoberta, criando uma comédia romântica com pitadas de afeto, desconforto e humanidade, uma história que fosse, acima de tudo, possível e honesta.


Definição do tom e da estrutura

Depois da etapa de pesquisa, precisei fazer escolhas. O tom da narrativa seria uma comédia dramática com estrutura de coming of age, gênero que acompanha o amadurecimento do personagem principal. Como aponta o pesquisador Eduardo Valente (2015), o coming of age brasileiro ainda é pouco explorado fora dos moldes da infância marginalizada ou do trauma social. Em Me Leva, a proposta foi inverter isso e apresentar a juventude como potência, ainda que cheia de erros, incertezas e desejos fora do script.

Assim nasceu Gabi, a protagonista. Jovem, intensa, engraçada e, como muitas de nós, cheia de expectativas sobre o amor. Acompanhá-la em sua jornada, que começa em Goiânia e a leva para o interior de Goiás, foi também me reencontrar com minhas próprias idealizações românticas. A escaleta foi construída como um verdadeiro mapa de estrada: paradas, obstáculos, encontros inesperados e um destino que se revela diferente do imaginado.


Logline e sinopse: encontrar o centro da história

Antes de escrever qualquer coisa, foi preciso entender qual era o coração da história. A criação da logline e da sinopse foi um dos momentos mais desafiadores do processo. Porque, mais do que resumir a trama, esses dois textos, mesmo que curtos, precisavam capturar o que havia de mais essencial em Me Leva.

A logline passou por várias versões até chegar a uma forma que funcionasse. Era importante que ela revelasse o conflito principal da história, sem entregar demais. O desafio foi equilibrar leveza e conflito, já que a história fala de coisas boas como amizade e amor, mas também de frustração, amadurecimento e tomada de consciência.

A sinopse, por sua vez, me ajudou a perceber o arco emocional da história. No início, parecia apenas um resumo técnico. Mas conforme fui reescrevendo, percebi que ela precisava carregar um tom, um clima, que já fosse sensível à trajetória de Gabi e Léo. A sinopse passou a ter não só os eventos principais, mas também o espírito da história. Com isso, ficou mais fácil entender como cada personagem e cada acontecimento colaborava para o crescimento dos personagens.

Abaixo temos o resultado de como a sinopse final ficou:


“Para conhecer a namorada virtual que mora na Chapada dos Veadeiros, Gabi é capaz de tudo. Ela e Léo, seu melhor amigo, saem de Goiânia e antes da metade do caminho as coisas dão errado. Eles ficam presos numa pequena cidade do interior de Goiás e conhecem Hélio e sua filha Ana, que lhes oferecem estadia, alimentação e a oportunidade de ver a vida de outra perspectiva. Para Gabi, isso não é o suficiente e ela tenta a todo custo seguir seu plano de viagem. Enquanto Léo aproveita a experiência forçada para repensar algumas questões de sua vida, Gabi precisa lidar com o sumiço da namorada que não responde suas mensagens e com a aproximação inesperada de Ana. É no meio do nada e entre desconhecidos que Gabi e Léo descobrem novas possibilidades e exploram mais de si mesmos.”


Esse processo me mostrou algo simples, mas profundo: às vezes, a gente só entende sobre o que está escrevendo quando tenta explicar para os outros. A logline e a sinopse, nesse sentido, não foram só materiais de apresentação. Foram parte da escrita. Um passo necessário para descobrir o que Me Leva queria e precisava ser.


O roteiro que nasceu dos personagens

O ponto de partida da construção do roteiro foi Gabi e Léo. Comecei a pensar: como apresentar logo de cara quem eles são, como vivem, o que sentem? Ao invés de criar uma trama primeiro e depois encaixar os personagens, preferi fazer o contrário. A história nasceu deles, das personalidades, do cenário em que vivem na periferia de Aparecida de Goiânia, da cumplicidade entre os dois amigos. A viagem, os encontros, até mesmo os conflitos, vieram depois.

Essa abordagem, conhecida como desenvolvimento centrado nos personagens, é amplamente discutida por autores como Robert McKee, que defende que "estrutura e personagem são uma coisa só. O personagem é estrutura, a estrutura é personagem." (McKee, 1997). Em Story: Substance, Structure, Style, and the Principles of Screenwriting, McKee argumenta que a ação dramática nasce das escolhas que o personagem faz, e não o contrário. Portanto, entender profundamente quem são esses personagens e o que os motiva é essencial para criar uma narrativa coerente.

Além disso, Linda Seger, em Creating Unforgettable Characters (1990), destaca que personagens bem construídos não apenas movem a história, mas ajudam o espectador a se conectar emocionalmente com a trama. A autora afirma que o roteirista deve “conhecer o personagem como conhece um amigo íntimo”, e foi exatamente esse entendimento que guiou meu processo: mais do que uma função na trama, Gabi e Léo precisavam ser pessoas críveis, com histórias próprias, sonhos, inseguranças e contradições.

Esse caminho também dialoga com estudos do cinema brasileiro contemporâneo, que cada vez mais valorizam narrativas localizadas e identitárias. Segundo Lúcia Nagib, em O Cinema da Retomada (2002), o foco em personagens e ambientes periféricos representa uma tendência de valorização da diversidade regional e da subjetividade dos indivíduos fora dos grandes centros, oferecendo ao público experiências mais autênticas e próximas da realidade brasileira.

Foi a partir desse alicerce que os personagens de Me Leva começaram a tomar forma. Eles nasceram aos poucos, como quem chega em uma festa tímida e vai se soltando conforme o tempo passa. Primeiro veio Gabi, com seu jeito intenso, emocional e meio impulsivo, uma jovem gorda, lésbica, de classe média da periferia de Aparecida de Goiânia, que sonha alto, ama demais e se frustra fácil. Gabi tem muito de mim, mas também tem muito de tudo que já consumi ao longo da vida. Ela é o tipo de gente que sente muito e tem medo de se sentir sozinha.

A construção da Gabi também exigiu olhar para a relação que ela tem com o próprio corpo. Gabi cresceu em um mundo que ensinou que corpos como o dela não são desejáveis e essa ideia contamina o modo como ela se enxerga e se relaciona. Ela não se vê como alguém digna de ser amada, com prioridade. Por isso, qualquer atenção mínima que um interesse romântico oferece a ela vira imediatamente uma promessa de amor eterno, mesmo que essa relação seja desigual, cheia de silêncios e faltas. A idealização, nesse caso, surge como uma forma de suprir a carência afetiva que tantas pessoas gordas conhecem desde cedo.

Para construir Gabi, me inspirei em protagonistas como Olive, de Pequena Miss Sunshine, e Frances, de Frances Ha. Assim como elas, Gabi não segue um caminho linear de amadurecimento — ela tropeça, se ilude, repete erros, mas nunca deixa de tentar. O humor da Gabi nasce do constrangimento e da entrega, não da ironia.

Léo, o melhor amigo, surgiu como contrapeso emocional da Gabi, mas foi ganhando voz própria muito rápido. Ele é um jovem negro, bissexual, que ainda não descobriu o que quer fazer da vida. Ele representa esse lugar de transição e pressão que muitas juventudes brasileiras vivem: o entre-lugar de quem não tem todas as respostas, mas sente a urgência de se encaixar em algum futuro.

Iara, a suposta “grande paixão” de Gabi, foi construída para provocar essa idealização amorosa que muitas vezes projetamos em alguns amores. Ela funciona quase como um espelho do desejo da Gabi, e sua ausência física realça o vazio que a protagonista tenta preencher. Ao longo da narrativa, ela deixa de ser um objetivo e se transforma num símbolo daquilo que Gabi precisa soltar para seguir em frente.

E então, no meio do caminho, surgiu Ana, talvez a personagem mais inesperada da trama. Ela chegou como quem não promete nada, mas deixa tudo diferente. Ana representa a possibilidade do presente. É através dela que Gabi se confronta com uma outra forma de amar, mais leve, mais recíproca e mais pé no chão. Ana carrega um pouco da energia solar das protagonistas de Crush e Bottoms, mas com um jeito calmo, firme e silencioso. Uma personagem que diz muito mesmo quando fala pouco.

Hélio, o pai de Ana, é uma figura que, à primeira vista, parece periférica na trama, mas aos poucos revela sua importância. Viúvo, roceiro, de fala mansa e olhar atento, ele representa um tipo de masculinidade raramente explorada no cinema: a do homem que acolhe, que cuida, que escuta. Em uma história que se passa no interior de Goiás, um dos estados mais conservadores do Brasil, Hélio quebra as expectativas comuns sobre homens do campo. Ele não carrega rigidez nem imposição moral, mas sim uma leveza e uma generosidade afetiva que surpreendem e acolhem. Hélio é o contraponto do pai controlador, ausente ou autoritário — arquétipos comuns em histórias de amadurecimento. Sua forma de receber Gabi e Léo no rancho reforça a ideia de que o afeto pode vir de muitos lugares, inclusive dos mais improváveis.

Criar esses personagens foi, antes de tudo, um exercício de escuta. Mais do que funcionarem bem na trama, eles precisavam fazer sentido entre si. Como amigos, como parceiros, como antagonistas temporários. Porque, no fim, são as relações que movem Me Leva. Não só a de Gabi com quem ela ama, mas também com quem a segura, quem a provoca, quem a faz rir e quem a devolve para si mesma.


Antes da escrita: o valor do tempo de escuta e pesquisa 

A escrita de um roteiro não começa com o “fade in”. Começa muito antes, na escuta, na observação, na pesquisa e na dúvida. Me Leva precisou ser maturado devagar, não só para entender o que queria contar, mas para descobrir como contar. Cada referência estudada, cada personagem desenhado, cada sinopse reescrita foi uma forma de me aproximar da história com mais profundidade e honestidade. Só depois de ter passado por essas etapas, pesquisa, referências, logline, sinopse, criação de personagens, é que pude, de fato, começar a estruturar a escaleta, desenvolver o argumento e encarar o roteiro de longa-metragem com mais segurança e estrutura. O tempo da preparação, muitas vezes invisível, é o que sustenta a força do que será dito. E é nele que mora a semente de qualquer boa história. Me Leva é um projeto de desenvolvimento de roteiro aprovado no Edital de Seleção Pública nº 06/2023 – Cinema e Audiovisual, da Lei Paulo Gustavo de Aparecida de Goiânia


Referências Bibliográficas

Livros e artigos:

  • BORDWELL, David. Poetics of Cinema. Nova York: Routledge, 2008.

  • COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: teoria e prática. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

  • MCKEE, Robert. Story: Substance, Structure, Style, and the Principles of Screenwriting. Nova York: ReganBooks, 1997.

  • NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002.

  • SEGER, Linda. Creating Unforgettable Characters. Nova York: Henry Holt and Company, 1990.

  • SILVA, João Pedro da. “Representatividade LGBTQIA+ no Cinema Brasileiro Contemporâneo”. Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, v. 9, n. 2, 2020.

  • THOMPSON, Kristin. Storytelling in the New Hollywood: Understanding Classical Narrative Technique. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999.

  • VALENTE, Eduardo. “O adolescente brasileiro no cinema de ficção: possíveis leituras de um corpo em transformação.” In: Revista Contracampo, UFF, n. 34, 2015.

Filmes:

  • Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine). Dir. Jonathan Dayton e Valerie Faris, EUA, 2006.

  • Benzinho. Dir. Gustavo Pizzi, Brasil, 2018.

  • Frances Ha. Dir. Noah Baumbach, EUA, 2012.

  • (500) Dias com Ela (500 Days of Summer). Dir. Marc Webb, EUA, 2009.

  • Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. Dir. Daniel Ribeiro, Brasil, 2014.

  • Tudo Que Você Podia Ser. Dir. Ricardo Alves Jr., Brasil, 2022.

  • Bottoms. Dir. Emma Seligman, EUA, 2023.

  • Crush. Dir. Sammi Cohen, EUA, 2022.

Séries:

  • Feel Good. Criação de Mae Martin e Joe Hampson, Netflix, Reino Unido/Canadá, 2020–2021.

  • Eu Nunca... (Never Have I Ever). Criação de Mindy Kaling e Lang Fisher, Netflix, EUA, 2020–2023.

  • Atypical. Criação de Robia Rashid, Netflix, EUA, 2017–2021.



 
 
 

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